quinta-feira, maio 25, 2006

Caetano e os Canibais

A Propoósito do colóquio (muito bem) organizado pela Fundação Luso- Brasileira sobre o tema "Fluxos literários entre Portugal e o Brasil" aqui fica uma pequena contribuição pessoal. O Brasil nunca saiu da minha vida. Vivi na Av. do Brasil. Perto, havia o liceu Padre António Vieira, que frequentei até ao 25 de Abril. Entre o liceu e a Av. Rio de Janeiro, descobri, reconheci, achei... os meus amigos de adolescência. Um deles até era descendente directo do descobridor oficial do Brasil. Morei depois numa rua com o nome de um bandeirante Paulista antes der chegar à rua do santo Doutor (este último português de Alhandra).

Nas tardes de uma primavera marcelista, traficávamos letras e canções, ouvíamos Chico e Caetano e Novos Baianos e discutíamos muito ...porque nem todos entre nós, estavam de acordo com os novos sons e gostos musicais que nos chegavam do Brasil.

Mas o tema é a antropofagia. Ou melhor: como nasceu esta apropriação do mito antropofágico por parte dos Brasileiros? Como e quando é que o brasileiro nascido no encontro da terra do pau-brasil, do índio, do branco e do negro decidiu aceitar a herança canibal que lhe vinha dos relatos dos outros? Porque canta a Adriana Partinpim “Vamos comer Caetano”?
Luciana Stegagno Picchio, num livro recentemente publicado sobre as Viagens dos Portugueses...cita Drummond de Andrade......Museus! estátuas! catedrais! O Brasil só tem canibais!
“....Que o Brasil seja a terra dos canibais além de ser a dos papagaios, é um lugar comum, presente nas obras de brasileiros e de estrangeiros, desde os primeiros anos da conquista até aos nossos civilizadíssimos anos 2000. E isto tanto ao nível de uma realidade antropológica ( melhor diríamos antropofágica) quanto de metáfora esclarecedora.”[1]
Esta verdadeira paixão brasileira de comer, de devorar, de deglutinar tanto o Bispo Sardinha...[2].como a carne holandesa mais branca e menos sebosa, que o herói caboco de João Ubaldo Ribeiro[3], confessa, ser bastante melhor que a de todos os portugueses e espanhóis que já provara...

A antropofagia vem de longe,.não é uma característica especificamente brasileira. Claro, de devoradores de homens, estão cheias as crónicas, e os canibais, pré-históricos e actuais foram estudados a vários níveis. Basta citar o clássicos de Montaigne[4] e de S. Freud[5 ] e toda uma multidão de antropólogos , etnólogos, estudiosos da história das religiões, aos psicólogos e psicanalistas. “...O que é brasileiro...“é porque e como é que, o brasileiro, acusado de antropofagia pelos estrangeiros, decidiu aceitar-se a si próprio como representante, por um lado, diacronicamente , do índio primordial, e por outro, sincronicamente, do índio ainda primitivo, parte do Brasil Multirracial?...” [6].

Em 67, Caetano Veloso e Gilberto Gil, vão introduzir o som eléctrico... e recrear e incorporar nas suas letras, o discurso provocatório do movimento modernista brasileiro.
Caetano explica no seu livro, o encontro com a obra de Oswaldo de Andrade, através de uma peça, inédita, levada ao palco pelo grupo de teatro Oficina, de São Paulo - “O rei da vela”. “...eu tinha escrito “Tropicália” havia pouco tempo quando “o rei da vela” estreou. Assistir a essa peça representou para mim a revelação de que havia de fato um movimento acontecendo no Brasil. Um movimento que transcendia o âmbito da música popular.”[7] “...a ideia de canibalismo cultural servia-nos, aos tropicalistas, como uma luva. Estávamos “comendo” os Beatles e Jimi Hendrix. Nossas argumentações contra a atitude defensiva dos nacionalistas encontravam aqui uma formulação sucinta e exaustiva...”[8]

O código da comida é um dos mais importantes no caso do Brasil. Saber comer é muito mais refinado do que alimentar-se. O mesmo facto associa a comida à sexualidade. "A relação sexual eo acto de comer aproximama-se num tal sentido que indica como os brasileiros entendem a sexualidade e a veem não como um encontro de opostos e iguais(o homem e a mulher que seriam donos de si mesmo) mas como um modo de resolver essa igualdade através da absorção, simbolicamente consentida em termos sociais, de um pelo outro.[9]

[1]Picchio, Luciana Stegagno, Mar Aberto – Viagens dos Portugueses, Lisboa , Caminho, 1999, p. 145
[2] Andrade, Oswaldo de, A Utopia Antropofágica, S. Paulo, Editora Globo, 1990
[3] Ribeiro, João Ubaldo, Viva o Povo Brasileiro, Lisboa, D. Quixote, 1995
[4] Montaigne, Essais, Cap. XXXI, Des Cannibales, Paris, Pocket,1998
[5]Freud, Sigmund, Totem et Tabu, Paris, Gallimard, Idées, 1940
[6]Picchio, ibid., p.148
[7] Veloso, Caetano, Verdade Tropical, São Paulo, Companhia das Letras, 1977, p.244
[8] ibid., p.247
[9] DaMatta, Roberto , O que faz o brasil , Brasil?, Rio de Janeiro,Rocco,2001, pp. 60.