quarta-feira, maio 24, 2006

O Crime

Rubem Fonseca inaugura o romance policial no Brasil com "O caso Morel". Neste romance retrata aspectos do quotidiano e das experiências da burguesia carioca da Zona Sul do Rio de Janeiro, misturando "instinto e asfalto", expressões de uma libido sem saída até uma convivência de afecto e projecto...

O livro foi publicado no Brasil em 1973, conta a história de um artista plástico que mantém uma relação com Joana, uma rapariga mais nova, filha de um embaixador, passando a viver com ela e outras duas mulheres - a trapezista Ismêndia e a modelo e prostituta Carmen no mesmo apartamento. O trio forma uma família muito especial. Até que Joana aparece morta na praia e aí começa o enredo...

A escrita de Rubem Fonseca descreve sem medo das palavras, situações cruas, cenas de violência e depravação, vistas como reflexo da tecnocracia e da sua acção num mundo subdesenvolvido, o Brasil, como sinal de deterioração dos valores burgueses vigentes. Uma escrita seca, incisiva. "A confirmação da potencialidade da ficção brasileira na abertura às diferenças que não se esgotam nem nos "bas-fonds" cariocas nem nos rebentos paulistas em crise de identidade".

O escritor, procura analisar as percepções e lembranças segundo um materialismo clássico, separando os comportamentos das suas personagens, protótipos sociais dos anos 60. Aqui, o escritor demonstra a força e o fôlego em páginas cruéis onde disseca os motivos (em geral perversos) que regem os comportamentos dos seus personagens que ainda trazem bem presente a marca de tipos sociais do passado.

“- Papai, estou fodido.
- Está todo o mundo fodido. Ele não piscava o olho. Talvez pensasse no pai dele, o meu avô, saindo de dentro do seu veleiro como do útero da mãe, remando solitário num pequeno barco, em busca do maldito peixe, na madrugada turva daquele mar feroz, com fé em Deus e nos braços musculosos. Segurei na mão de meu pai. Os braços dele estavam roxos das porcarias que as enfermeiras tentavam enfiar-lhe no corpo e que escapavam das veias como as águas saem dos esgotos nas tempestades. Virei as palmas das suas mãos descoradas e ali estavam os calos, amarelos e duros como as escamas dos peixes.

Naquele instante o meu pai morreu.” O caso Morel, (pp.50-51).

De forma exemplar em O Caso Morel, narrador e personagem confundem-se. Duas visões que se cruzam com um terceiro narrador, o próprio escritor que vai deixando traços ao longo das páginas: das citações sem qualquer referência às constantes notas de rodapé. Avisos que se repetem incessantemente, como um aviso ao leitor (sejamos nós ou Vilela). Quem está a falar? A quem se dirigem os avisos? Leitor, narrador e personagem são elementos que se confundem e interagem em todo o livro.

Dois pontos de vista ou um só? Qual é afinal a verdade? Não há apenas uma verdade. Há sim, um livro dentro de um livro e o livro de dentro transforma-se num repertório de pistas que dão ao leitor a possibilidade de partilhar a criação da verdade ou das várias verdades... Desta forma, as narrativas assumem caminhos opostos, que convergem porém sobre a mesma questão: o crime.